Li um Kafka (ou quase)

Na semana passada o pessoal da Sintaxe ligou e me disse: – Heitor, você vai ler um Kafka! Parecia uma ameaça. Fiquei com medo e perguntei: – Isso é perigoso? Quem é esse Kafka? Eles riram e me acalmaram: – Não tem perigo, nenhum, Heitor. E me falaram um pouco dele: “Kafka é considerado um escritor complexo e os seus personagens sofrem de conflitos existenciais. Ele nasceu na cidade de Praga em 1883 e morreu em 1924, vitima da tuberculose, aos 41 anos, em um sanatório perto de Viena. A maior parte de sua obra foi publicada depois da sua morte. No mundo kafkaniano os personagens não entendem o sentido de suas vidas e sempre estão em confronto com o poder das instituições. Suas histórias mostram o tamanho da impotência e da fragilidade do ser humano”. – Eu estou achando perigoso, sim, ler esse Kafka, eu disse, zoando com eles. – Na verdade, Heitor, você vai ler um livro que conta uma história que aconteceu com o Kafka, um ano antes de sua morte. Essa história foi contada por Dora Dymant, sua mulher nessa época. Vamos mandar o livro para você. Você vai gostar!

Recebi o livro em casa. Ele se chama Kafka e a boneca viajante, foi escrito pelo espanhol Jordi Sierra i Fabra, tem ilustrações de Pep Montserrat, e foi publicado no Brasil em 2008 pela editora Martins Martins Fontes. O livro é maravilhoso! A história é emocionante. Quem não leu, precisa ler. Era o início do verão de 1923, Kafka morava em Berlin e ia todas as manhã ao parque Steglitz. A paz e o silêncio desse parque faziam bem à sua saúde. Um dia ele estava no parque e ouviu o choro alto de uma menina, que estava muito perto dele. “Ela chorava em pé, desconsolada, tão angustiada que parecia trazer no rosto toda a dor e a aflição do mundo”. “Franz Kafka olhou para um lado e para o outro. Ninguém notava a menina. Estava sozinha”. Ele não sabia o que fazer. Se conversava com ela ou simplesmente ia embora. Ele nunca tinha ouvido alguém chorar daquele jeito.

Kafka pensou muito e decidiu falar com a menina. – Olá. O que aconteceu? Você se perdeu? – Eu não, ela respondeu. – Quer dizer que você não se perdeu. – Eu não, já disse. – Quem então? – Minha boneca. – Sua boneca? – É. A menina chorava e parecia sofrer muito. “Eram as lágrimas mais sinceras e dolorosas que já tinha visto. Lágrimas de uma angústia suprema e de uma tristeza insondável”. Ele não sabia o que dizer à menina. – Onde você a viu pela última vez? – Naquele banco. – E você onde estava? – Estava brincando. – E ficou lá muito tempo? – Não sei. Ele pensou e descobriu uma solução simples para a sua mente criativa de escritor.

– Espere um pouco, que bobagem a minha! Qual o nome da sua boneca? – Brígida. – Brígida, claro! E soltou uma risada para convencer a menina. – É ela, lógico! Desculpe, não me lembrava do nome! Às vezes sou tão avoado! Com tanto trabalho! A menina arregalou os olhos. – Sua boneca não se perdeu. Ela foi viajar. – Viajar? – Isso mesmo! Qual é o seu nome? – Elsi. – Elsi, claro! Lógico que era a sua boneca, porque a carta era para você. – Que carta? – A que ela escreveu, explicando por que foi embora tão de repente. Kafka disse a menina que, na pressa, tinha deixado a carta em sua casa, mas que lhe entregaria no dia seguinte. – Sou um carteiro de bonecas.

Assim que a menina saiu da praça e voltou para casa, Kafka percebeu que acabava de se meter numa tremenda confusão. Precisava escrever aquela carta. Com criança não se brinca, ele pensou: sem aquela carta, Elsi cresceria com o pior dos traumas: o de ser abandonada por sua boneca. Era escritor, mas nunca havia escrito uma carta de uma boneca viajante para a menina que fora sua dona até o momento da separação. Kafka foi para casa, se trancou em seu escritório e escreveu a carta. No dia seguinte, no horário combinado, levou a carta para menina. Elsi olhou o envelope, virou e viu o remetente: “Brígida. West End. Londres” Não faltou nem o selo.

Kafka leu a carta para a menina. Nessa carta a boneca explicava porque foi embora tão de repente sem se despedir. As despedidas são tristes e ela não queria ver Elsi chorar. Disse que a amava. Que as pessoas e as bonecas são feitas de sentimentos e emoções e que é preciso ir usando aos poucos. Disse também que depois de viver esses anos ao lado da menina, ela se sentia a boneca mais feliz do mundo. Mas que agora ela se preparava para inicar uma nova vida. Falou dos lugares que conheceu em Londres: o Picadilly Circus, passeio de barco pelo Tâmisa, caminhada pela Trafalgar Square e ainda assisitu, à noite, a uma peça de teatro no Soho.

Esse é só o começo da história do livro. Depois disso a boneca da menina foi à Paris, Viena, Veneza, Moscou, seguiu para a Espanha, Grécia, Hungria, cruzou o mar e foi à Africa, à Asia, à America do Norte e do Sul. Também cruzou o deserto do Saara, explorou a Índia, percorreu a muralha da China, nadou no mar Morto, escalou os picos do Himalaia. Esteve em Pequim, em Tóquio, em Nova York, em Bogotá, no México, em Havana, em Hong Kong. Pulava de um continente ao outro num abrir e fechar de olhos. E nesse tempo Kafka escreveu uma carta por dia. Mas isso não poderia durar a vida toda ou toda a infância da menina. Kafka tinha que dar um fim para essa história. Mas só lendo o livro para saber que fim o escritor deu para a história da boneca viajante.

Tem uma parte do livro em que a mãe de Elsi, curiosa pelas histórias contadas pela filha, lê as cartas, segue a menina e vai conversar com o carteiro de bonecas, Franz Kafka. Esse trecho do livro é muito emocionannte. Diz que Kafka chorou nesse encontro com a mãe de Elsi. Eu também chorei.     

Jordi Sierra

O escritor Jordi Sierra i Fabra nasceu na Espanha em 1947. Com mais de 300 obras publicadas de gêneros diversos. Criou a Fundação Jordi Sierra i Fabra, em Barcelona, e a Fundação Taller de Letras Jordi Sierra i Fabra para a América Latina, na Colômbia, que desenvolvem um intenso trabalho com crianças e jovens para estímulo à leitura e à criação literária.

O ilustrador Pep Montserrat nasceu na Espanha em 1966. Ilustrou diversos livros infantis e juvenis. Também trabalha como ilustrador para jornais como El País, na Espanha, e The New York Times, nos Estados Unidos. Desde 1998 é professor na escola de arte Massana de Barcelona.

Compartilhe:
  • Facebook
  • Twitter
  1. Oi, Heitor!
    Que tipo de literatura você mais gosta de ler?
    Eu trabalho em uma editora e gostaria de mandar algus livros bacanas pra você ler.
    O que acha?
    OBRIGADA.

  2. Oi, Suely.
    Mandar livro pra mim! O que eu acho? Eu acho ÓTIMO!!!
    Eu gosto de muitos tipos de literatura. Gosto desses livros que falam da relação entre as pessoas e emocionam a gente, como esse que eu acabei de ler; gosto de aventura; gosto desses que contam a história da vida de pessoas, tipo biografias; gosto de muita coisa e de principalmente conhecer coisas novas. O meu e-mail: leheitor@sintaxe.com.br. Obrigado!

  3. Que bela dica, Heitor! Li duas vezes essa sua apresentação do livro, e fiquei com muita vontade de ler o quase-Kafka. Tenho certeza que é um livro lindíssimo, mas a sua apresentação dele já é uma beleza. Que blog bárbaro!

  4. Oi, Lia. Esse livro é lindo, mesmo! Que bom que você gostou da dica e também do blog. Sempre que eu colocar um post novo, vou mandar e-mail para você.

  5. Nossa Heitor, adorei a dica…Já li e vou ler de novo, só que agora eu vou contar a história pra minha filha e pra minha sobrinha de 5 anos,tenho certeza que elas vão adorar.É um livro que encanta adultos e crianças.
    Já percebi que suas dicas são valiosas,vou ficar de olho nelas!!!

  6. Fantástica a história, mas hoje em dia não se acha gente assim preocupada com as outras pessoas… raridade! Espero que você cresça com esse exemplo Heitor! Aliás, queria saber quando é que minhas sobrinhas estarão prontas para ler esse tipo de coisa, elas têm 5 anos e só querem saber de DVD! =( O que você acha?

  7. Oi, Mariana. Você vai ficar de olho nas minhas dicas?! Que legal! Eu também acho, esse livro encanta pessoas de todas as idades. Sua filha e sua sobrinha vão adorar, mesmo!

  8. Oi, Mario. É difícil, mas a gente encontra. Eu tenho encontrado tanta gente boa! Obrigado, eu quero crescer assim. Quanto as suas sobrinhas, a Mariana do comentário aí de cima , vai ler para a filha e para a sobrinha dela, que têm a mesma idade das suas. Eu acho que é uma boa ideia, leia com elas. Com o tempo elas pegam gosto pela leitura.

  9. Oi Heitor. Gostei muito do seu blog. Que bacana seu gosto pela leitura. Fiquei com muita vontade de ler os livros dos quais você fala pelo encantamento que você nos transmite ao contar suas impressões. Vou continuar acompamhando seu blog para que eu tenha mais vontade de ler. um abraço

  10. Oi, Aline. Que bom que você gostou e ficou com vontade de ler os livros, e ainda vai acompanhar o meu blog. É assim mesmo que eu fico quando eu leio uma história bonita como essa: encantado! Que legal que você percebeu isso.

  11. Oi,Heitor adorei o seu blog e, que linda história fiquei curiosa e quero ler este livro.Estou encantada e adoro quando uma história me traz esse encantamento.Obrigada.
    PS.Meu filho se chama Heitor.

  12. Oi, Elisete. Que bom que você gostou do meu blog e ainda ficou curiosa para ler este livro. Este livro é muito legal, mesmo!
    Então o seu filho é meu xará? Mostra o blog pra ele!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *