Gosto de fuçar nas estantes das livrarias a procura de livros novos pra ler, também faço isso nas bibliotecas, nas duas que mais frequento na minha cidade, a Anne Frank e a Monteiro Lobato. Tem muitas coisas que me chamam a atenção para um livro, a capa, o título, o autor, quando é conhecido. Se gosto do livro assim de cara, já começo a ler os textos; o da quarta capa, que é aquele impresso na parte de trás do livro; e a orelha, que é o texto escrito naquela dobra que tem na capa.
Se o interesse vai aumentando, leio a apresentação, quando tem; ou o começo do primeiro capítulo. Sempre que chego até aí, dá vontade de levar o livro e terminar de ler em casa. Quando estou na biblioteca é fácil, só pegar emprestado; na livraria, nem sempre tenho dinheiro pra comprar, daí fico na vontade. Apesar de que para livros meus pais sempre me dão dinheiro, e depois, eu não peço tanto assim.
Foi o que me aconteceu outro dia, estava fuçando numa livraria e vi, de longe, um livro que tinha uma capa muito bonita, cheguei mais perto e o peguei na mão, Os da minha rua, é o nome do livro. Esse título já me fez lembrar as histórias que sempre ouço de meu pai e de sua rua da infância, inclusive contei uma dessas histórias no post anterior. Também me lembrei do meu amigo e vizinho Lipe, e das nossas histórias, que não são tão emocionantes como as de meu pai, mas que são bem legais também.
Não conhecia o autor. Abri pra ver se o livro era, mesmo, como eu estava pensando – às vezes a gente pensa que um livro é uma coisa, mas ele é outra. Li a orelha, a apresentação e a primeira história, é um livro de contos. Os da minha rua é exatamente como pensei, melhor até. Levei pra casa – nesse dia tinha dinheiro pra comprar – li e gostei tanto, que fui procurar outros livros desse autor. Encontrei, li três livros de Ondjaki e hoje vou falar deles, dos livros e do escritor.
Infância em Luanda de escritor angolano é inspiração para seus livros
Além de Os da minha rua, li A bicicleta que tinha bigodes, e Uma escuridão bonita, que é ilustrado com desenhos de António Jorge Gonçalves. Também quero ler o AvóDezanove e o segredo do Soviético, que ganhou Jabuti de Melhor Livro Juvenil em 2010, mas esse vai ficar pra depois, minha cota pra comprar livros neste mês, já se esgotou. Enquanto lia os três livros, assisti a uma entrevista com Ondjaki na TV, vi outros vídeos na internet, e fiquei sabendo muita coisa de sua vida e de sua obra.
Descobri que muitas histórias que estão em alguns de seus livros são inspiradas em suas próprias histórias, ele disse que sempre gostou de ouvir e de contar histórias e acha que foi por isso que virou escritor. Seu nome verdadeiro é Ndalu de Almeida, nasceu em Angola, na cidade de Luanda, escreve para adultos, mas também já publicou livros juvenis e infantis, e ganhou muitos prêmios literários.
Ondjaki tem livros em que o narrador é uma criança, disse que quando escreveu esses livros foi como se essa criança tivesse ditado a história para ele, essas histórias se passam em Luanda e tem personagens que existem, de verdade, como sua avó, seus pais, suas irmãs.
Ele conta que a cidade de Luanda é cheia de histórias, “se uma pessoa chega atrasada a um compromisso, ao invés de, simplesmente, se desculpar, ela vai contar uma história, vai inventar uma história”. A cidade também é inspiração para seus livros, principalmente a Luanda de sua infância: “Se eu lembro de Luanda eu lembro-me de coisas boas, e se eu me lembro de coisas boas, eu fico com vontade de escrever, depois é só decidir se aquilo dá ou não dá para fazer material para um livro”.
A estória que valia uma bicicleta
A bicicleta que tinha bigodes, de Ondjaki, publicado pela Pallas Editora é um dos seus livros em que o narrador é uma criança, que como disse o autor, ditou toda a história para ele. O livro conta que na rua do menino narrador vivia o tio Rui, um “escritor que inventa estórias e poemas que até chegam a outros países muito internacionais”. O Camaradamudo, “um senhor gordo que fala pouco” e que também vive nessa rua, disse que as estórias do tio Rui viraram peças de teatro num país de nome comprido, “parece que se diz ‘Julgoeslávia’.” Um dia o menino ouviu uma notícia na rádio, que iam dar uma bicicleta colorida, bem bonita, para quem escrevesse a melhor estória.
Mas ele não tinha jeito nenhum para essa coisa das estórias e foi falar com outras crianças pra saber quem tinha ideias e queria participar do concurso nacional da bicicleta colorida. Ninguém quis ajudar, então foi conversar com o Camaradamudo e por fim conseguiu a ajuda de sua amiga Isaura. Juntos, elaboraram um plano, que se ganhassem, dividiriam a bicicleta nos dias da semana. O plano seria pegar alguma história do tio Rui, que ficavam presas em seu bigode e depois eram guardadas em uma caixa pela tia Alice. “Ela esfregava os bigodes, soprava, esperava e aquilo acontecia: pequenas letras caíam do bigode para a caixa, eram vogais de ‘a’, ‘e’, ‘i’, ‘o’, ‘u’, mas também sobras de ‘k’ e ‘w’, alguns ‘t’, e dois ‘h’.”
Essa é só uma parte bem pequena do livro, pois até ele conseguir escrever a estória pra tentar ganhar a bicicleta, acontecem muitas coisas na história desse livro, bonitas e engraçadas. No final ele manda pra rádio a sua estória, que não é bem uma estória, mas que só vai descobrir o que é, quem ler o livro.
Histórias da rua de Ondjaki em Luanda
Li na apresentação de Os da minha rua, de Ondjaki, publicado pela editora Língua Geral, que o livro faz parte da coleção Ponta de Lança, que apresenta “aos leitores brasileiros vozes novas, ou ainda pouco conhecidas”, algumas aqui do Brasil, mesmo, outras da África, da Ásia e da Europa, “expressando-se” em Português. Quando conheci o Museu da Língua Portuguesa e contei aqui no blog, eu disse que adoro essas coisas, saber que posso conversar com pessoas de outras partes do mundo, na minha língua.
Agora, ao ler esse livro de Ondjaki, descobri que não é só na língua que somos parecidos, muitas histórias da sua rua, que fica na cidade de Luanda, em Angola, país da África se parecem com as histórias daqui, que li, ouvi e até vivi, algumas.
Como já disse é um livro de contos, são 22 histórias, uma mais legal que a outra, narradas pelo “miúdo” Ndalu, o nome verdadeiro Ondjaki, têm personagens de sua vida real, sua mãe, seu pai, sua tia, seu tio, seu avô, sua avó, seus professores cubanos e seus amigos de infância. Certamente são histórias de sua própria infância ou, pelo menos, muito parecidas com ela.
Tem histórias engraçadas e divertidas, outras emocionantes e até um pouco tristes – confesso que chorei em algumas, mas todas muito bonitas. Não é um livro juvenil, mas li, adorei e entendi quase tudo. Só algumas palavras do português falado em Angola, que eu não sabia o que eram, mas no final do livro tem um glossário, que explica todas, no A bicicleta que tinha bigodes também tem glossário.
A estória de um beijo
O livro Uma escuridão bem bonita, escrito por Ondjaki e publicado pela Pallas Editora é juvenil. Tem ilustrações de António Jorge Gonçalves, são desenhos muitos bonitos, que ajudam a criar o clima romântico da história, que começa quando a luz elétrica acaba de repente. O narrador da história puxa conversa com uma menina e lhe faz uma pergunta: “Tu não achas que as pessoas são uma coisa tão bonita?”
A menina não responde, só lhe faz “uma festinha rápida na mão”, e ele descobre que “uma pessoa pode dizer coisas sem ser com a voz de falar”. A história continua e ele vai pensando e refletindo sobre outras descobertas, até perceber que a mão da menina estava perto da dele, e sente “uma comichão de ausência na proximidade daquele calor” e tenta esconder que o que ele mais queria naquele momento, era uma “carícia calada” dela.
Ele arrisca outra pergunta: “Achas que pode caber o que no coração das pessoas?” Ela responde: “Muitas coisas. Um poema, uma recordação, um cheiro de infância, um ‘desejo de estrelas’…” “Como é um ‘desejo de estrelas’?” “É olhar para uma estrela e desejar uma coisa.” Eles continuam conversando até voltar o silêncio, que ele interrompe com outra pergunta:
“Achas que o coração das pessoas é pequeno?” “Sim. Pequenino mesmo.” E o silêncio volta novamente, que “fica muito nítido na ausência da luz.” – Nesses silêncios da história ele reflete sobre umas coisas bem legais. Desta vez ele interrompe o silêncio com um pedido: “Dá-me só um beijo…” “Não posso…” Ele percebe os dentes dela rindo na escuridão. “Porquê?” “Porque não tenho vontade.” E a história continua, com conversas, silêncios, reflexões, cinema imaginário, até chegar… Nem preciso dizer que no final eles se beijam, um beijo tão delicado, que só vendo…
Ondjaki (Ndalu de Almeida) nasceu em Luanda, Angola, em 1977, e atualmente vive no Rio de Janeiro. Escreve romance, contos e às vezes poesia. Também escreve para cinema e correalizou o documentário “Oxalá cresçam Pitangas”, sobre a cidade de Luanda. É membro da União dos Escritores Angolanos, licenciado em Sociologia em Portugal, fez doutorado em Estudos Africanos na Itália. Recebeu os prêmios António Jacinto (Menção Honrosa, Angola); Sagrada Esperança (Angola, 2004); Prêmio Literário António Paulouro (Portugal, 2004); Grande Prêmio do Conto (A.P.E., Portugal, 2007); Grinzane – young african writer (pelo conjunto da obra, Itália/Etiópia, 2008); Prêmio Bissaya Barreto de Literatura para a Infância (Portugal, 2012); Prêmio Literário José Saramago (Portugal, 2013); FNLIJ – juvenil (Brasil, 2010 e 2013); e Jabuti – juvenil (Brasil, 2010). Seus romances, contos, poesia e livros infantis, foram traduzidos para o francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, polonês e sueco.
António Jorge Gonçalves é desenhista, ilustrador e nasceu em Lisboa, Portugal. Faz HQ (história em quadrinhos), ilustração editorial, cartoon político e desenho digital ao vivo. Publicou e expôs em Portugal, Austrália, Coreia do Sul, Espanha, França, Bélgica e Itália. Desenha semanalmente um cartoon político (suplemento Inimigo Público, no jornal Público). Tem trabalhado extensivamente na área performativa criando cenografia para várias peças de teatro e fazendo Desenho Digital ao Vivo com músicos, atores e bailarinos em Portugal, França, Alemanha, Japão e EUA. Criou o projeto Subway Life desenhando pessoas sentadas em carruagens do Metrô em várias cidades do mundo. Leciona sobre “Espaços Performativos” no mestrado em artes cênicas da FSCH (Lisboa).