Bartolomeu Campos de Queirós

Este é o último post do ano. Volto no final de janeiro, com novidades. Logo no começo do ano vamos ter um clube de leitura com uma escola municipal de São José dos Campos, combinei com o professor Carlos e já contei aqui no blog. A outra novidade eu ainda não posso contar, mas já está praticamente certa. O pessoal da Sintaxe me disse que só falta assinar o contrato. “Essas coisas são demoradas, mesmo” – eles me explicaram, e me pediram para eu ter paciência e esperar mais um pouco pra contar. Nessas coisas eu não me meto, minha função é ler e contar, e assim que eles autorizarem eu venho aqui e conto tudo. É a realização de um sonho meu!  Agora vou falar de um escritor que eu gosto tanto, que li sete livros dele, de uma vez. O post ficou maior grandão, mais ficou legal, vocês vão ver. Então é isso… Bom Natal pra todos e feliz Ano Novo!

Prosa poética

Hoje vou falar do escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Conheci o Bartolomeu, pessoalmente, na Bienal do Livro de SP do outro ano, assisti a uma palestra dele e contei aqui no blog. Ele estava junto com a minha amiga escritora, Katia Canton. Eu já tinha lido um livro do Bartolomeu na escola, no 5º ano. O livro se chama Até passarinho passa. Eu me lembro de que a nossa professora fez uma coisa bem legal com esse livro, lemos durante a aula. Alguém lia um parágrafo em voz alta e todos diziam o que tinham entendido daquele pedaço da história.

O nome da nossa professora daquele ano era Rose. A professora Rose era “apaixonada pelo Bartolomeu” e não se cansava de ler em voz alta tudo o que ele escrevia. “Isso é prosa poética, meus queridos alunos, ler Bartolomeu faz bem pra alma” – ela dizia. Na época não entendi muito bem, mas hoje eu sei o que é prosa poética e concordo com a professora Rose: ler Bartolomeu é muito bom! Bartolomeu Campos de Queirós morreu no início deste ano. Além de escritor, com mais de quarenta livros publicados, ele foi um grande educador e liderou diversos movimentos pela valorização do livro e pelo incentivo à leitura.

Resolvi falar hoje do Bartolomeu, pois num dia desses vi a minha mãe lendo um livro bonito, de capa dura e vermelha, e perguntei a ela:

– O que você está lendo, mãe?

Vermelho amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós.

– Não foi esse livro que ganhou o prêmio São Paulo de Literatura?

– Foi este, mesmo!

– É juvenil?

– Não, este ele escreveu para adultos. É o primeiro livro do Bartolomeu para adultos.

– Que pena, eu queria ler… Eu li o Até passarinho passa na escola e depois li O olho de vidro do meu avô e gostei muito do jeito que o Bartolomeu escreve, é prosa poética!

– Este aqui é pura prosa poética, meu filho. Leia este, também.

– Não é difícil? Será que eu vou entender?

– Entende, sim… Faz como você fez quando leu o Machado de Assis pela primeira vez, usa o dicionário.

– Boa ideia! Quando você acabar, me empresta.

Enquanto eu esperava minha mãe terminar de ler o Vermelho amargo, fui atrás de outros livros do Bartolomeu e corri à biblioteca do meu bairro, aquela que o prefeito queria demolir. Encontrei um monte de livros dele e trouxe mais quatro pra casa: O peixe e o pássaro, Ciganos, Indez e Tempo de voo. Li todos, li sete livros de Bartolomeu Campos de Queirós – e não é conta de mentiroso, como dizia o meu avô. E hoje vou falar um pouquinho de cada um.

O peixe e o pássaro

O peixe e o pássaro foi publicado pela Editora Miguilim, tem fotos de Haroldo Carneiro, ganhou prêmio da Prefeitura de Belo Horizonte, e é o primeiro livro do Bartolomeu Campos de Queirós, que o escreveu no início da década de 1970, quando estudava na França. Ele morava perto de um jardim que tinha um lago. No final de semana ele se sentava nesse jardim para ler e sentia saudades do Brasil, “de comer feijoada, de dormir na cama com lençol passado, dos meus amigos”. No lago sempre aparecia “um peixe e botava a cabeça do lado de fora.” Também “havia várias gaivotas que mergulhavam no lago e tornavam a sair.” Ele começou a olhar aquela cena e percebeu que cada coisa tinha o seu lugar: se o peixe saísse da água, “morreria afogado no ar” e se “a gaivota ficasse dentro da água, morreria afogada”. Também percebeu que tanto o peixe quanto o pássaro não deixam rastros por onde passam. Ele nunca tinha pensado em ser escritor, mas ficou tão encantado com tudo isso, que resolveu escrever O peixe e o pássaro para aliviar suas saudades e contar essa história.

A Liberdade
O ar é imenso. A água é imensa. Pode-se viajar no ar e na água por muito tempo. Mas o peixe e o pássaro estão ali, parados.
A liberdade permite isso.
(Trecho de O peixe e o pássaro)

Ciganos

Ciganos, de Bartolomeu Campos de Queirós, publicado pela Editora Miguilim conta a história de um menino que observava os ciganos que apareciam em sua cidade, imaginava um monte de coisas e torcia para ser roubado por eles. “Ah, ser roubado era o mesmo que ser amado e ele sentia que só roubamos o que nos faz falta.” Naquele tempo se acreditava que ciganos roubavam crianças e com a chegada deles, o medo passava a ser companheiro dos meninos da cidade. Ninguém sabia de onde os ciganos vinham e para onde iam, e se as crianças fossem roubadas por eles, ficariam perdidas para sempre. O menino se sentia sozinho e pensava ser um cigano, “esquecido em porta de família alheia”. “Foi de seu pai que ele herdou essa mania calada, esse jeito escondido e mais a saudade de coisas que ele não conhecia, mas imaginava. Sua vontade de partir veio, porém, do desamor. Tudo em casa já andava ocupado: as cadeiras, as camas, os pratos, os copos. Mesmo o carinho distribuído.”

“Assim, revelando desejos, confirmando anseios, realizando a fantasia, os ciganos passavam a ser silenciosamente amados. E os seus nomes – Normano, Amália, Nuno, Bonança, Árias, Lourença – passavam a viver secretamente no sonho de todos daquele lugar. Carentes de emoções, tramavam fugas, sonhavam estradas, pensavam ilimitado amor. Quem sabe fugir para se conhecer o mundo de que só se tinha notícia, raramente…” (Trecho de Ciganos)

Indez

Indez é o nome do ovo deixado no ninho para que as aves continuem a botar outros ovos naquele mesmo lugar. Meu pai me disse que a minha avó fazia isso com as galinhas e patas que passeavam pelo quintal da casa da infância dele. Indez também é o nome de outro livro do Bartolomeu Campos de Queirós, que peguei emprestado da biblioteca e li. Publicado pela Editora Miguilim, o livro conta a história da infância do personagem Antônio, e é meio autobiográfico, pois também conta um pouco da infância do próprio autor. No tempo do Bartolomeu e da minha avó, quando o umbigo de uma criança recém-nascida caía, a parteira o enterrava em um lugar escolhido. Se fosse enterrado num jardim com flores, a menina seria bela e boa jardineira; se enterrassem na horta, o menino seria lavrador, e no curral, boiadeiro. “O destino era assim escolhido sem outros inúteis anseios. Assim sendo, nascer era tão bonito que acreditar em outra vida era coisa muito simples.” Já o umbigo de Antônio foi jogado na correnteza! Ele nasceu antes do tempo e veio na “estação das águas”.

“Nasceu tão fraco que recebeu o batismo em casa, na correria, sem festas. Para padrinhos escolheram casal de amigos bem próximos, com muitas desculpas. A morte sem batismo condenaria o menino, mesmo inocente, a viver eternamente no limbo, lugar sem luz.”

Antônio sobreviveu e o livro conta a história dele e mostra de um jeito muito bonito, os costumes daquela época, numa cidade do interior de Minas Gerais.

Tempo de voo

– Nossa! Você está tão trincadinho!

Ele me disse isso com um olhar escorrendo espanto. Sua pele me lembrava as águas se o vento dorme: lisa e mansa. Sua mão, cruzada a minha, amarrava um abraço entre a primavera e o inverno. Respirei o ar inteiro, para depois dar nome ao meu susto.

– É o tempo, meu menino, é o tempo!

Assim começa Tempo de voo, escrito por Bartolomeu Campos de Queirós, ilustrado por Alfonso Ruano e publicado pela Editora SM / Comboio de Corda. Este livro mostra a conversa de um homem mais velho e uma criança curiosa e continua assim:

– O tempo? Eu nunca vi o tempo.

– Também não. Ninguém vê o tempo. O tempo não para. Passa ligeiro e ninguém consegue tocá-lo. Ele tem medo de não atender aos nossos pedidos, por isso não nos escuta.

– Passa mais depressa que voo de passarinho?

– Muito, muito mais. Passarinho pousa, repousa, dorme, torna a voar e volta ao ninho. O tempo não tem ninho. Ele está sempre acordado, viajando e vigiando tudo…

E assim essa conversa segue e vai mostrando os mistérios do tempo que passa.

Até passarinho passa

Como disse no começo do post, o livro Até passarinho passa eu já tinha lido na escola, no 5º ano. Reli agora pra poder falar dele aqui. Até passarinho passa foi escrito por Bartolomeu Campos de Queirós, ilustrado por Elisabeth Teixeira, publicado pela Editora Moderna, e conta uma história que lembra a infância de um menino. Ele morava em uma casa que já não existe mais. “Como tantas outras coisas, ela passou.” Essa casa tinha uma “pequena varanda forrada de ladrilho xadrez, frio e limpo.” Os passarinhos vinham visitar a varanda para “colher as migalhas dos bolos, que caíam de propósito de nossas mãos…” Os passarinhos bicavam apressados as migalhas, como garimpeiros.

Era um menino triste que observava e amava esses passarinhos. “Quando eles surgiam, em bando ou solitários, meu coração deixava de bater para não assustá-los.” Ele pensava que para amar os passarinhos só os olhos bastavam. “Mas eu sofria de uma coceira incômoda na palma da mão. Vontade de pentear suas penas com meus dedos.” Entre o bando havia um passarinho que ele amava mais que todos. “Pousava sobre a grade da varanda, olhando por todos os lados. Parecia querer estar só comigo, eu pensava com vaidade.” E a história segue contando de um jeito muito bonito e um pouco triste a história do amor do menino pelo passarinho.

O olho de vidro de meu avô

Assim começa a história do livro O olho de vidro do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós, publicado pela Editora Moderna:

Era de vidro o seu olho esquerdo. De vidro azul-claro e parecia envernizado por uma eterna noite. Meu avô via a vida pela metade, eu cismava, sem fazer meias perguntas. Tudo para ele se resumia em um meio-mundo. Mas via a vida por inteiro, eu sabia. Seu olhar, muitas vezes, era parado como se tudo estivesse num mesmo posto. E estava. Ele nos doava um sorriso leve com meio canto da boca, como se zombando de nós. O pensamento vê o mundo melhor que os olhos, eu tentava justificar. O pensamento atravessa as cascas e alcança o miolo das coisas. Os olhos só acariciam as superfícies. Quem toca o bem dentro de nós é a imaginação.

E o seu avô imaginava sempre, o menino acreditava. O avô morava em Bom Destino e dizem que viajou para São Paulo para comprar “esse olho que não via”. “Naquele tempo, São Paulo ficava quase em outro país.” Quem conta essa história é um homem, que fala do tempo em que era menino. Fala do avô e do seu olho de vidro, da avó, do pai, da mãe dos tios e de toda sua família.

Ele tinha vontade de saber se o seu avô retirava o olho na hora de dormir, pois havia sempre, sobre o criado-mudo um pires, que poderia servir de berço para “um olho cansado de nada ver”. E o menino continuava a pensar:

Eu também gostaria de possuir um olho assim, que ficasse distante de mim, sobre o criado. Ter meu olho me espiando de longe. Quem sabe, eu me conheceria melhor? Conheceria minha superfície sem precisar de espelho. Um olho capaz de vigiar meu sono, me protegendo dos fantasmas que nos visitam se descuidamos de nós. E dormir e descuidar-se de si mesmo. Dormir é ficar desarmado, é não ser mais proprietário do próprio corpo. Ah! Como o olho do meu avô me enchia de dúvidas!

Vermelho amargo

Depois de ler esses seis livros de Bartolomeu Campos de Queirós, eu estava pronto para encarar o Vermelho amargo. Peguei-o da estante, sentei na minha poltrona predileta, deixei o dicionário ao alcance das mãos, abri o livro e comecei a leitura:

Mesmo em maio – com manhãs secas e frias – sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim. Desconheço o ruído que interrompeu o meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A vida me parece inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é demasiadamente penoso, se não me ocupo das mentiras.

Vermelho amargo também foi escrito por Bartolomeu Campos de Queiros, e foi publicado pela Editora Cosac Naify. Pelo que li depois, o livro é meio autobiográfico, conta um pouco da história do próprio autor, e é pura prosa poética, como disse minha mãe. Quase todos os parágrafos eu li mais de uma vez, alguns em voz alta. Para entender melhor o que estava escrito e também para ouvir a beleza do som das palavras. É muito bonito o jeito como o Bartolomeu escrevia! A mãe morreu aos 33 anos, ele tinha 6. Ela teve câncer, e quando sofria de dores cantava, cantos líricos. Foram criados pela madrasta – ele, seu irmão e sua irmã. A madrasta cortava fatias fininhas de tomate para as refeições e ele sentia saudades da mãe:

Sem o colo da mãe eu me fartava em falta de amor. O medo de permanecer desamado fazia de mim o mais inquieto dos enredos. Para abrandar minha impaciência, sujeitava-me aos caprichos de muitos. Exercia a arte de me supor capaz de adivinhar os desejos de todos que me cercavam. Engolia o tomate imaginando ser ambrosia ou claras em neve, batidas com açúcar e nadando num mar de leite, como praticava minha mãe – ilha flutuante – com as mãos do amor.

Bartolomeu Campos de Queirós nasceu em 1944 e viveu a infância em Papagaio, interior de Minas Gerais. Escritor com mais de 40 livros publicados, alguns deles traduzidos para o inglês, espanhol e dinamarquês. Formado em Educação, estudou Filosofia e Estética e utilizou a arte como parte integrante do processo educativo. Cursou o Instituto de Pedagogia em Paris e participou de importantes projetos de leitura no Brasil como o ProLer e o Biblioteca Nacional, dando conferências e seminários para professores de leitura e literatura.

Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado/ Palácio das Artes e membro do Conselho Estadual de Cultura, ambos em Minas Gerais, sendo também muito convidado para participar de júris e comissões de salões, além de curadorias e museografias. Idealizou o Movimento por um Brasil Literário, do qual participava ativamente. Por suas realizações, Bartolomeu colecionou medalhas: Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres (França), Medalha Rosa Branca (Cuba), Grande Medalha da Inconfidência Mineira e Medalha Santos Dumont (Governo do Estado de Minas Gerais). Recebeu, ainda, prêmios literários importantes, como Grande Prêmio da Crítica em Literatura Infantil/Juvenil pela APCA, Jabuti, FNLIJ e Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 16 de janeiro de 2012, na cidade de Belo Horizonte.