Ontem o pessoal da Sintaxe me ligou.
– Como é, Heitor, não vai escrever mais? Suas férias do blog já acabaram!
Às vezes eles pegam no meu pé e ficam me pilhando, mas eu gosto deles.
– Vou escrever, sim. Li um monte de livros nas férias e amanhã vou publicar um post novo.
– É mesmo? E de que livro você vai falar?
– Vou falar de três livros da Clarice Lispector.
– Você leu Clarice Lispector?! Gostou?
– Sim, eu li e adorei!
Ainda estou de férias da escola, mas já voltei de viagem e estou em casa. Fui com os meus pais e uns amigos deles para uma cidade no sul de Minas, na Serra da Mantiqueira. Lá tem montanhas e um monte de cachoeiras. Estava bem gostoso! Como eu já contei aqui, antes de viajar, no começo das férias, fui à biblioteca procurar livros de escritores que ficaram famosos escrevendo pra gente grande, mas que também escreveram para crianças. Peguei alguns emprestados, depois voltei e peguei mais. No post anterior falei do Moacyr Scliar e hoje eu vou falar da Clarice Lispector. Peguei três livros dela, já li, adorei e hoje vou falar deles.
Casa Bandeirista
Mas antes vou contar um passeio que fiz na semana passada. Fui conhecer uma casa bem antiga, do século XVIII, que fica aqui no meu bairro e que acabou de ser restaurada. É uma casa bandeirista, que no final do século XIX foi a residência da família que fundou o Itaim Bibi e, depois, até a década de 1970, foi uma clínica psiquiátrica, o Sanatório Bela Vista. Vou falar desse passeio, pois ele tem tudo a ver com a minha luta política. A mesma turma que hoje defende a biblioteca e o quarteirão, também defendeu a preservação dessa casa, que conta parte da história do nosso bairro.
Lá eu conheci o Alberto Magno de Arruda, o arquiteto responsável pela restauração. Conversei com o Alberto e ele me disse que também está fazendo a restauração de uma capela em São Luiz do Paraitinga, que foi destruída pelas enchentes do ano passado. Gostei do Alberto! Gosto das pessoas que se preocupam em preservar a história e a memória e não gosto das que saem derrubando tudo que veem pela frente, para construir prédios, e só pensam em ganhar dinheiro. O Helcias que é meu amigo e presidente do Grupo de Memórias do Itaim me disse que “a Casa Bandeirista deverá receber um Centro de Referência Cultural, com o objetivo de apresentar e manter as memórias e histórias da região.” Que legal!!!
Lá eu também conheci a Nereide Schilaro Santa Rosa, que é escritora e vai lançar um livro contando a história da Casa Bandeirista do Itaim. A Nereide nasceu no bairro, já publicou mais de 30 livros e recebeu muitos prêmios, até um Jabuti. Além de contar a história da Casa Bandeirista, esse livro vai falar da restauração e também vão ter alguns depoimentos da mãe dela, a dona Guiomar, que tem mais de 90 anos e é uma das mais antigas moradoras do Itaim Bibi. Quero ler o livro da Nereide!
Eu conversei com a dona Guiomar, ela é bem legal e se lembra de muitas histórias do bairro, desde o tempo em que era criança e já morava aqui. Também conversei com o seu Dacunto, que tem mais de 80 anos e sempre morou no Itaim. Ele me disse que se lembrou com saudades daquele lugar, de quando era menino e fazia suas aulas de reforço na escola da dona Olga, que ficava atrás do Sanatório Bela Vista, na antiga rua Sertãozinho.
Depois desse passeio, fiquei muito animado e otimista com a nossa luta em defesa da biblioteca e do quarteirão do meu bairro. Se com o nosso movimento, conseguimos preservar a Casa Bandeirista, que é uma propriedade particular, tenho certeza que vamos conseguir preservar o quarteirão, que é um patrimônio público. Meu pai está preocupado com a minha animação e tem medo que eu me decepcione. Ele disse para eu não contar muito com a vitória e que tenho que estar preparado pra tudo: “Ao contrário dessa construtora que restaurou a Casa Bandeirista, tem muitos empresários gananciosos, que só pensam no lucro, e se esquecem da história da cidade e do patrimônio público. A grana tem muita força, meu filho!” Ele anda meio pessimista.
Ninguém escrevia como Clarice Lispector
Desde que eu comecei a fazer o blog, ouço falar muito da Clarice Lispector. Eu nunca tinha lido um livro dela antes, mas já a conhecia de nome. Depois que eu conheci alguns escritores e passei a conversar com eles – graças ao meu blog – descobri que ela é muito querida nesse meio. Acho que todo escritor gosta da Clarice. Li na orelha de um dos seus livros, que o Alceu de Amoroso Lima, que foi um grande crítico literário e tinha o pseudônimo de Tristão de Ataíde, disse que “ninguém escrevia como Clarice Lispector”. Fiquei curioso para ler um livro dela.
Quando estava na biblioteca procurando livros infantis de autores que ficaram conhecidos por escrever para adultos, encontrei uns livros da Clarice e descobri que ela também escreveu para crianças. Eu não sabia! Peguei três – A vida íntima de Laura, A mulher que matou os peixes e O mistério do coelho pensante. Já li todos e adorei. O Tristão tinha razão, ninguém escrevia como Clarice.
A Vida íntima de Laura, publicado pela Editora Nova Fronteira conta a história de uma galinha orgulhosa, que gostava de andar bem arrumada. Clarice começa o livro explicando o quer dizer “vida íntima”, que é “aquilo que se passa dentro da casa da gente e são coisas que não se dizem a qualquer pessoa”. Mas mesmo assim, ela conta a vida íntima da galinha, que era um pouco burra, “mas tem lá os seus pensamentozinhos e sentimentozinhos. Não muitos, mas que tem, tem.” Era uma galinha muito simpática, que vivia com outras aves, no quintal da dona Luísa. Era casada com um galo chamado Luís, que gostava muito dela, embora às vezes brigassem. “Mas briguinha à-toa”.
Laura era a galinha que mais botava ovos no galinheiro da dona Luísa e por isso era a protegida. Quando começou a ficar velha, a cozinheira disse para dona Luísa apontando para Laura: “- Essa galinha já não está botando muito ovo e está ficando velha. Antes que pegue alguma doença ou morra de velhice a gente bem que podia fazer ela ao molho pardo.” A dona Luísa respondeu à cozinheira: Essa aí não mato nunca. Laura ouviu tudo, e mesmo assim, sentiu medo e passou a se disfarçar para fugir da cozinheira. A Clarice escreve como se conversasse com a gente: “Quando eu era do tamanho de você, ficava horas e horas olhando para as galinhas. Não sei por quê. Conheço tanto as galinhas que podia nunca mais parar de contar.” E ela conta, mesmo, um monte de intimidades da sua galinha Laura.
Em A mulher que matou os peixes, ilustrado por Carlos Scliar e publicado pela Editora Sabiá, Clarice Lispector conta que essa mulher é ela, mesma, mas que foi sem querer. “Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra.” Ela dá sua palavra de que é uma pessoa de confiança, seu coração é doce, e não deixa criança nem bicho sofrer perto dela. Promete contar no final do livro como aconteceu essa tragédia e por enquanto só diz que os peixes morreram de fome, “…esqueci de lhes dar comida. Depois eu conto, mas em segredo, só vocês e eu vamos saber. Tenho esperanças que até o fim do livro vocês possam me perdoar.”
Daí ela começa a falar da sua relação com os bichos, que sempre gostou deles e teve sua infância rodeada de gatos. Sua casa também tinha bichos naturais, “aqueles que a gente não convidou, nem comprou”. Baratas (ela conta um monte de histórias de baratas), lagartixa, que gosta de comer moscas e mosquitos, que também são bichos naturais. Depois ela fala dos bichos convidados e também dos bichos comprados. Dois coelhos que foram morar com ela. Ela diz que o coelho tem uma história cheia de segredos e que até já contou a história de um, em um livro. Esse livro é o outro dela que eu li e vou falar dele em seguida. Ela também fala dos patos e que teve dois, fala das galinhas dos pintos, dos cachorros, – desses, ela fala bastante – fala dos micos e muito mais. No final eu perdoei a Clarice pela morte dos peixes. Você perdoaria?
Sobre O mistério do coelho pensante, ilustrado por Leila Barbosa e publicado pela Editora Rocco, Clarice Lispector diz que só serve para criança que simpatiza com coelho e que foi escrito a pedido-ordem de seu filho Paulo, quando ele era menor e ainda não tinha descoberto simpatias mais fortes. É uma homenagem a dois coelhos que pertenceram aos seus dois filhos, Pedro e Paulo, e que lhes deram “muita dor de cabeça e muita surpresa de encantamento.” Este livro é uma conversa sobre coelho e ela diz que “esse ‘mistério’ é mais uma conversa íntima do que uma história”. E para ela “conversar sobre coelho é muito bom”.
O coelho dessa história chamava-se Joãozinho e ele pensava mexendo o nariz. Mexia muito rápido, mas pensava devagar. Para conseguir cheirar uma só ideia, precisava franzir quinze mil vezes o seu nariz, que chegava até a ficar cor-de-rosa. Um dia o Joãozinho cheirou uma ideia muito boa, até parecia ideia de menino. Ele ficou encantado, a ideia que ele tinha cheirado era tão boa quanto o cheiro de uma cenoura fresca. Daí ele começou a trabalhar nessa ideia, e pra isso, precisou mexer tanto o nariz, que quase ficou vermelho. Ele descobriu como sair da sua casinhola! Mas como podia sair lá de dentro, se as grades eram estreitas, ele era gordo, não podia passar e nem levantar o tampo, que era feito de um ferro pesado. Aí está o mistério do coelho pensante. Será que vamos adivinhar? A Clarice diz pra gente começar a franzir o nariz para ver se dá certo.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em 1920 e com pouco mais de um ano, veio com a família para o Brasil. Moraram em Maceió e depois em Recife, onde passou a sua infância. Com a morte da mãe, quando tinha 12 anos, a família se mudou para o Rio de Janeiro e ela começou a escrever os seus primeiros contos. Depois fez faculdade de Direito e passou a escrever em jornais. Em 1943 publicou o seu primeiro livro, Perto do coração selvagem, e já fez muito sucesso, pelo seu jeito de escrever, diferente de tudo o que existia. Como o seu marido era diplomata, Clarice viveu uns quinze anos fora do Brasil. Nesse tempo se dedicou só à literatura. Separou-se do marido, voltou ao Brasil e morou no Rio de Janeiro até morrer de câncer em dezembro de 1977. Clarice Lispector foi uma das mais importantes escritoras brasileiras. Escreveu romances (Perto do Coração Selvagem, A Paixão segundo G.H., Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, Água Viva, A hora da estrela; entre outros); contos (Alguns contos, Laços de família, A legião estrangeira, A via crucis do corpo, entre outros); crônicas, cartas e muito mais; além dos livros infantis O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura, Quase de verdade, e Como nasceram as estrelas.
Bartolomeu Campos de Queirós
Nesta semana li a notícia de que o escritor Bartolomeu Campos de Queirós morreu. Fiquei muito triste. Sempre fico triste quando morre um escritor. No ano passado foi o Moacyr Scliar e neste, o Bartolomeu. O que me consola são os livros deles, que eu ainda posso ler. Assisti a uma palestra do Bartolomeu na Bienal e contei aqui no blog. Eu me lembro que nessa palestra ele disse que preferia ler a escrever. Quando ele escrevia se sentia muito vaidoso, e quando lia, era generoso. Ele também disse que quando era criança ouvia muitas histórias contadas pela sua avó e que aprendeu a ler e escrever com o seu avô. Uma vez o seu avô lhe disse que “o alfabeto só tem 26 letras e com elas podemos escrever tudo que quisermos.” A partir desse dia o Bartolomeu ficou procurando alguma coisa que não pudesse escrever com as letras. Já li alguns livros do Bartolomeu Campos de Queirós e vou falar deles em um dos próximos posts.