– Você não se lembra, Heitor. – Do que, mãe? – Eu li um livro do Machado do Assis para você. Eu acho que você tinha uns quatro ou cinco anos. Você não se lembra? – Não lembro, não, mãe. Qual era o livro? – Um apólogo. – Como? – Um apólogo era o nome do livro. Chama-se apólogo porque no final a história tem uma moral e os personagens não são gente. O livro conta a história da briga da agulha com a linha para ver quem é a mais importante. – Eu nunca li nada de briga de agulha e linha! – Pois é, você disse no blog que nunca leu Machado de Assis, mas eu já li Machado para você. Vou procurar esse livro. Deve estar guardado no meio das suas bagunças. Ela encontrou: Um apólogo, de Machado de Assis, com ilustrações de Ana Raquel, publicado pela Editora DCL em 2003.
Assim que ela me deu o livro, eu sentei, abri e comecei a ler: “Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: – Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? – Deixe-me, senhora. – Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. – Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.” E eu fui lendo até o final e vendo as ilustrações da Ana Raquel. Li um livro do Machado de Assis pela primeira vez! Ou não seria a primeira vez? Minha mãe leu pra mim! É legal. Mas é diferente.
Eu não me lembro de minha mãe ter lido este livro para mim, mas eu me lembro muito bem, que minha mãe sempre lia para mim, e meu pai também. É uma das lembranças mais gostosas que eu tenho desse tempo. Era tão bom ouvir minha mãe e meu pai contando histórias. Às vezes eu pedia para eles pararem um pouco, para eu pode ver como estava escrita a história que eles me contavam, e também para admirar as ilustrações. Outras vezes eu pedia para eles voltarem para uma parte da história, pois eu não tinha entendido direito, ou ela era tão bonita, que eu queria ouvir de novo. Nos dias de frio era mais gostoso ainda. Ficávamos embaixo das cobertas horas, lendo histórias. Eu prestava bastante atenção na cara deles. Quando a história era engraçada eles abriam um sorriso e depois soltavam uma gargalhada.
E quando a história era triste, então. O sorriso se fechava e aos poucos suas caras iam mostrando um clima tristonho e melancólico. Eu lembro uma vez – não sei qual era a história, mas era bem triste – minha mãe engoliu seco, parecia querer evitar alguma coisa que estava para acontecer. Ela tentou segurar, mas não conseguiu. Minha mãe chorou! Algumas lágrimas caíram dos seus olhos. – Você está chorando, mamãe? – Essa história é emocionante demais, meu filho, ela respondeu ainda um pouco engasgada. Acho que foi nesse dia que eu descobri que não se chora só de dor.
Outra coisa que eu gostava de fazer nesse tempo era ficar olhando os meus pais lerem. Eles liam com tanto gosto. Até hoje eles gostam de ler e lêem bastante, mas naquele tempo eu observava mais essas coisas. Uma vez minha mãe estava lendo, com uma cara tão feliz, que eu perguntei a ela mais ou menos assim: O que aconteceu, mamãe, que te deixou desse jeito? Estou lendo um livro maravilhoso, meu filho! Acho que é por tudo isso, que hoje eu gosto de ler. E também por que ler é muito gostoso!
A Mariana colocou um comentário no outro post dizendo que gostou tanto do livro Kafka e a boneca viajante que vai ler para a filha e para a sobrinha de cinco anos. Leia, sim, Mariana, pois muitas coisas gostosas podem acontecer.